quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Lá vai ela a caminho dos 88

Lá vai ela tão franzina, figura frágil e dócil que esconde a ira herdada da vida, às vezes, refletida em palavras e expressões frontais sem qualquer floreado. Quando ela quer, ela consegue ser dura, apesar de doce e franzina.

Lá vai ela, a que não sabe ler nem escrever, mas que tirou o mestrado em abraços e mimos, pelo menos para pôr em prática com os netos (talvez só com os netos). É das poucas pessoas que beijo e abraço sem cerimónia. Tenho a certeza que a capacidade que tenho para beijar e abraçar o meu filho tantas vezes, se deve (muito) a ela: ao que ela me deu. 

Lá vai ela, a que guarda no rosto as marcas do caminho, as intempéries da vida, as mágoas, a desilusão e o cansaço.

Lá vai ela, a que adocicou os meus Natais com fritos finos, estaladiços e gulosos; com o bolo que herdou o nome de "bolo da avó" porque sempre foi ela que o fez; com um arroz doce que não há igual. Desiludo-me sempre que como arroz doce, nenhum é como o dela - não faço ideia se é o melhor, mas para mim é o verdadeiro.

Lá vai ela, a que nos defendia das iras da minha mãe, que se condoía com as nossas dores, que nos elogiava, mas, se necessário, nos atirava com verdades relâmpago. Talvez ela não tenha adquirido a capacidade de selecionar o que diz; talvez ela não faça nada para parecer bem ou para parecer mal. Talvez ainda guarde a pureza da sua essência, a inocência. Ela é assim e ainda bem.

Lá vai ela, a que sempre desejou conseguir juntar algum dinheiro, porque sempre teve de o contar até ao final de cada mês. Ainda assim, conseguia sempre ter uma nota de parte para nos dar no aniversário e no Natal. Eu sei que ela desejou muitas vezes ter mais dinheiro, viver melhor. Não que tivesse medo de trabalhar, mas desejava que o trabalho lhe devolvesse a possibilidade de ter uma conta a prazo, talvez porque se sentisse mais independente e segura com isso. Acho que eu e a minha irmã herdámos esta necessidade.

Lá vai ela, a que me deu uma tia-irmã. Foi mãe de uma menina aos 46 anos que é um ano mais nova do que eu.

Lá vai ela com dois bisnetos: uma menina e um menino. Como a minha irmã referiu, que pena eles não a terem como nós a tivemos.

Lá vai ela, a que me dizia desde os meus 20 anos: não demores a ter filhos, despacha-te a ser mãe, depois fico velha e não consigo ajudar-te... Fui mãe aos 37 anos e, sim, constatei que já eras velha para me ajudar. Mas lembra-te que guardo a certeza de que se tivesse sido mãe cedo, era contigo que ele tinha ficado até aos três anos de idade.

Lá vai ela, a que cozinhava para nós, a que descascava a fruta e a cortava em pedaços para termos apenas o trabalho de a saborear. Eu olhava para ela e admirava o gosto e o orgulho que ela colocava naquele ritual. Hoje, quando preparo a fruta para o meu filho, compreendo-os melhor  (o gosto e o orgulho). Simbolizam o cuidado e o mimo por quem amamos.

Lá vai ela a chegar ao fim dos 87 anos, já com menos força, menos garra, menos saúde, mais dependente. Mas com o (meu) profundo  desejo de continuar a dizer "lá vai ela", por muitos e muitos anos.

Lá vai ela, a minha avó, a caminho dos 88.

1 comentário:

  1. Sinto-me ofendida com a questão do arroz doce! Mas a descrição desta pessoa tão especial não podia ser mais perfeita...

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