terça-feira, 27 de outubro de 2015

24 meses de ti e o mundo que eu não sou capaz de te explicar

Filho, fizeste 2 anos e há coisas que, apesar de não conterem a alegria e a felicidade da celebração desta data, tenho de escrever. Temo não ser capaz de as explicar com palavras adequadas à tua idade. Preciso de escrever para, depois, definir como te transmitir o que não sou capaz de, agora, te explicar.
No seguimento da carta que te escrevi há 2 anos e uns dias (ver aqui), tenho a dizer-te que também existem mundos que eu não queria que conhecesses. Existem mundos que me amedrontam. Que me fazem sentir pequenina. Que me envergonham. Que me fazem dar passos para trás como de murros no estômago se tratassem. Que não me permitem conter as lágrimas que teimam em cair-me dos olhos, olhos estes que anseiam ver outro mundo para ti. Que me fazem suster a respiração, como se uma nuvem empoeirada pairasse sobre mim. Existem mundos que eu queria mudar. Por ti, por mim, por nós. Eu não queria escrever sobre eles porque preferia que não existissem. Mas existem. Existem mundos que eu não consigo compreender e, consequentemente, não sou capaz de te explicar. O meu ignorante raciocínio não consegue compreender as explicações apregoadas por alguns.
Mas, sabes filho, existem coisas que julgo ser capaz. Talvez eu seja capaz de te mostrar que, por outro lado, existe um mundo composto de gente, de seres humanos fortes e genuínos, mais emocionais do que racionais, capazes de ir mais além. Talvez eu seja capaz de te ensinar que, com convicção, com determinação e com amor, há muitas coisas que podemos mudar. Talvez eu seja capaz de te fazer acreditar - acreditar em ti, no mundo, nas pessoas. Acreditar sempre. Tenho mesmo de ser capaz. Por ti, por mim, por nós.

Há gentes do passado que fizeram descobertas grandiosas e gentes do presente que fazem a ciência evoluir a cada segundo. Ou não, já nem sei o que é evolução.
As gentes do passado descobriram e aperfeiçoaram meios de transporte que nos permitem percorrer o nosso mundo mais facilmente. Noutros tempos, a construção de uma canoa tinha como objetivo atravessar o rio para o outro lado. Hoje, com aviões a percorrer os céus e a deixar um rasto de giz (aquele risco branco que se vê cá de baixo, que me faz pedir desejos e ter esperança, não sei se sou só eu a fazer isto), continua a existir gente a ansiar pela canoa que atravessa o rio, camuflando o medo, enfrentado a morte e a acreditar. Em simultâneo, há gente convicta de que existem pessoas de cá e pessoas de lá, como se o "lá" e o "cá" não se situassem no mesmo mundo. No nosso. Como é que eu te explico isto?
Antepassados nossos descobriram e aperfeiçoaram as telecomunicações para nos tornarmos mais próximos, ainda que distantes fisicamente. Hoje em dia, as mensagens já não são enviadas pelo pombo-correio, mas continuam a existir pedidos de ajuda que não chegam ao recetor. Ou então, é o recetor que finge que os mesmos vêm numa língua não universal e que, por isso, podem ser ignorados. Como se uma mão a acenar no meio de um mar imenso não significasse um pedido de ajuda. Cá e lá. É linguagem universal, não há que enganar.
Descobriram a arma, vê só a "grande descoberta". Acredito que nos primórdios com vista a sobrevivência: caça e defesa. Hoje, consigo encontrar grupos e sub-grupos de armas na Internet, leis que legislam a utilização das mesmas. Mas não vejo o silêncio e a inércia punidos nesses livros de verdades absolutas. Do lado de cá do rio, com transportes evoluídos e com formas de comunicar inovadoras, em vez de se esticar o braço há quem baixe a cabeça e vire as costas. Há quem não vire as costas, há quem seja "corajoso", há quem olhe para o lado de lá e grite para as gentes da canoa "volta para trás", "o mundo é de todos, mas os todos de que falamos são só alguns". Esta prepotência também é uma arma. Mas a sua utilização não é punida. Como é que eu te explico isto?
Mas, sabes filho, também há os que lançam cordas para os que caem da canoa se agarrarem. Os que "entram mar adentro" para puxar a canoa carregada de medo e de esperança. Os que põem a emoção na força que usam e ignoram a reflexão e os motivos dos que não se vergam para puxar a corda. Eu quero ser dos que puxam a corda.
Um dia destes, sentiremos (na pele) os abraços virtuais enviados através de uma caixa com fios e luzes, chegados do outro lado do mundo e ficaremos felizes. Mas se o vizinho do lado precisar de um abraço, não sabemos como o fazer. Como é que eu te explico isto?

Filho, estamos a viver uma crise. A mim, parece-me a crise dos valores, dos direitos e dos deveres humanos, mas chamam-lhe a crise dos refugiados. É adequado, na medida em que é a crise dos que têm de deixar a única casa que conheceram para fugir da guerra, à procura de uma vida melhor. Dos que se atiram para dentro de barcos sem condições nenhumas porque tentam sobreviver. Dos que tentam derrubar barreiras físicas e humanas porque não querem morrer. Dos que procuram refúgio. Dos que procuram um porto seguro. Há mães que atiram os filhos para o desconhecido com esperança de os salvarem, correndo o risco de os perderem para sempre. Há crianças, filho, há crianças como tu que morrem nesta caminhada. Há quem se aproveite. Como é que eu te explico isto?
Neste mundo, que eu gostava que não existisse, também há os que morrem de fome e que não têm condições básicas de higiene nem cuidados básicos de saúde. Há crianças que são forçadas a trabalhar quando deviam lutar pelo baloiço do parque infantil que frequentas. Há crianças que, em vez de serem protegidas pelo simples motivo de serem crianças, pessoas e o amanhã, são maltratadas. E isto acontece em muitos sítios deste mundo (Cá e lá) que eu, por vezes, não sou capaz de te explicar.
Os que defendem que não se deve esticar a mão para puxar a canoa, cheia de gente de lá, têm argumentos. Muitos. Entoados com convicção. Mas eu não consigo compreendê-los, logo não consigo aceitá-los ou explicá-los. Um dia destes tentarei escrever sobre esses motivos, mas não para tos explicar. Não sou capaz.


Créditos de imagem: Bernardo P. Carvalho

Filho, a canoa traz gente de diferentes classes sociais, com diferentes convicções, com diferentes objetivos... Mas traz gente.
Fizeste 2 anos, meu grande amor pequenino, e o meu presente é explicar-te que podemos mudar estes mundos que eu, por vezes, não sou capaz de te explicar. Nem que seja uma pequena parte, tão pequena que é quase invisível. Felizmente, há muitos outros a mudar pequenas partes. Todos juntos faremos algo que se veja - melhor ainda, algo que se sinta. Acredita, filho. Eu acredito. Por ti, por mim, por nós
Eu acredito que, se consigo descobrir novos trilhos através dos teus pequenos passos, se consigo experimentar texturas através das tuas pequenas mãos, se consigo ver a beleza de olhar para o céu e desejar boa noite à lua quando me dizes que lá fora está escuro, se consigo ouvir os cães a ladrar e os pássaros a cantar no meio da confusão só porque tu me dizes "Olha, o cão!", "Olha, o passarinho!", se consigo reaprender a saborear alimentos só porque tu me perguntas "O qué ito?", também sou capaz de mudar alguma coisa. Por ti, por mim, por nós. Pelo mundo que eu, às vezes, não sou capaz de te explicar.
Menos explicações e mais ações que, espero, sejam um exemplo, é o meu presente de 2.º aniversário.
Parabéns filho, parabéns por ti, por mim, por nós e por estes 2 anos.

Carta escrita ao meu filho por ocasião do seu 2.º aniversário.

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